Inclusão é um tema muitas vezes subestimado pelo excesso de seu uso.
Incansavelmente discutido nos meios de comunicação, o assunto acaba nos transportando para a escola ou para a acessibilidade das pessoas com deficiência, mas a abrangência da discussão da inclusão – nos meios específicos – vai muito além do óbvio.
Para desenvolver um trabalho inclusivo é necessário abraçar uma visão inclusiva de mundo. Conhecer o desenvolvimento das pessoas e acreditar nesse processo através da conscientização de que todos temos reconhecimentos, inteligências e capacidades diferentes. Essa soma é precisamente o que agrega interesse e um aumento de possibilidades para a resolução de questões que dialogam com a sociedade como um todo. Todos temos formas diferentes de nos expressar, de aprender, de nos colocar diante da vida. A partir do momento em que essa essência for respeitada, aceita e valorizada, teremos uma sociedade mais justa por meio de condições igualitárias de desenvolvimento e empoderamento, seja qual for a forma de expressão e de atuação, de identificação de gênero, idade, etnia ou crença das pessoas.
Sob a luz de que inclusão é uma via de mão dupla – de um lado a pessoa com deficiência e de outro toda uma sociedade com valores e conceitos pré-estabelecidos historicamente a respeito da deficiência – quando trabalhamos ou pensamos em inclusão nunca podemos esquecer disso. O trabalho deve surtir efeito nessas duas esferas.
Segundo Vigotsky (1924), toda deficiência afeta antes de tudo as relações sociais da pessoa e não suas interações diretas com o ambiente físico. O “defeito orgânico” se manifesta inevitavelmente como uma mudança de status social. Desde muito cedo, pais, familiares, professores e colegas dão um tratamento diferenciado a essa pessoa. Ora de forma positiva, ora negativa. Mas categoricamente diferente. Se estabelece então uma relação social diferente. O autor acredita ser essa a principal diferença entre o homem e os animais: um animal que apresente qualquer deficiência, não terá em hipótese alguma sua “personalidade” afetada.
Entre o ser humano e seu ambiente físico, encontra-se um ambiente social: um lugar de retratação e transformação de suas ações recíprocas com o mundo. Portanto é o problema social resultante de uma deficiência que deve ser considerado principal; e por essa razão, a educação social – baseada na compensação social dos problemas orgânicos – deve ser o ponto forte a ser trabalhado para proporcionar o
desenvolvimento geral (intelectual, emocional, motor, sensorial) da pessoa com deficiência e, consequentemente, transformar não suas atitudes, mas o olhar do outro, do normatizado. Isso contribui para a diminuição de preconceitos e do equivocado senso comum que acredita que o deficiente intelectual não possui capacidades ou habilidades.
Pensar nas artes em geral como um caminho para inclusão social das pessoas com deficiência pareceu, para mim, uma possibilidade particularmente edificante. É trilhar por onde não exista o que é considerado “certo” e o que é considerado “errado”, como em outras atividades sociais humanas. É, de certa forma, um caminho não trilhado em toda a sua distância (apesar da vulgarização do termo). Um olhar libertador que promove não só a possibilidade de uma maior expressão do que há em nós, mas também de transformação. Quando criamos artisticamente em determinadas condições favoráveis, estamos experimentando em nós mesmos e criamos diferentes ângulos de contato com o mundo ao nosso redor. Esse processo pode ser altamente enriquecedor e podemos, da mesma forma, descobrir e desenvolver em nós capacidades e observações antes totalmente desconhecidas. Além de oferecer como resultado um produto artístico e a possibilidade de compartilhar esse ideal de transformação com o público.
Segundo Flávio Gonzales (2009, p.4), arte e sonho abraçam o exercício maior das possibilidades criativas. A partir deles tudo é possível. No entanto, a arte leva a vantagem de necessitar de materialidade, de concretude.
“Qualquer modalidade artística pressupõe ação, seja através da escrita, da plasticidade dos materiais, da palavra, dos sons ou das cenas. A arte pode até nascer de um sonho, mas, para que seja arte, pressupõe a ação do corpo, o movimento, o compartilhamento entre pessoas. Sim, pois ainda que um quadro pintado jamais seja exibido para alguém, ele pressupõe, na sua própria essência, a presença do espectador. ”
A arte tem um alto poder transformador por estar diretamente ligada ao fazer. A pessoa com deficiência tem, especialmente graças à segregação social, restritas possibilidades de fazer. Está sempre diante do estigma da incapacidade e por essa razão, em grande parte das vezes, tem alguém que faça por ela. Segundo Vigotsky (1924), o ato de fazer, ao mesmo tempo que transforma o mundo também nos transforma, numa dança dialética que impulsiona a evolução humana.
A inclusão celebra a diversidade e a arte utiliza essa diversidade como matéria prima para sua realização.Um relato em primeira pessoa a respeito dos grupos APAEDança Floripa e Cia. de Dança Lápis de Seda.
Relato aqui um pouco da minha experiência profissional, sobre a qual utilizo a dança como um fio condutor para o desenvolvimento da pessoa com deficiência. Essa experiência foi construída ao longo do dia-a-dia em mais de 25 anos de trabalho e transcende métodos e padrões. Conforme se faz, se cria.
Partindo do princípio de ser impossível separar o cognitivo, o físico e o emocional, ou seja: considerando o ser humano como um todo, percebo que é no corpo que se é o que se é. Dessa maneira, é nele que a individualidade e a integralidade se apresentam e, portanto, convém experimentá-lo, ensiná-lo, conhecê-lo. Conhecer o próprio corpo faz parte da definição da identidade. É nesse jogo de descobertas que os outros corpos diferentes nos mostram quem somos. A dança – fazer artístico que mantém o corpo em movimento – possibilita tais descobertas.
A princípio, foi com base nesse entendimento que iniciei o trabalho com dança inclusiva: com o objetivo único de utilizar a dança como elemento propulsor. Pautado no fato de possibilitar a exteriorização de potencialidades que permitem a vivência do corpo e, por meio dele, estabelecer ligações com o mundo externo. Representar uma forma de expressão extraverbal, isso é o que desencadeia o equilíbrio entre corpo, emoção e razão.
Visei ampliar as capacidades das pessoas ao utilizar seus corpos de forma completa, harmoniosa, respeitosa e responsável, proporcionando um bem-estar físico e psíquico. Incentivar um maior poder relacional e de comunicação. Não menos importante, mesmo que em segundo plano no trabalho, esse processo promove benefícios mais conhecidos da prática da dança, ligados ao próprio domínio e capacidade de orquestração estética dos movimentos. O objetivo é, antes de mais nada, a inclusão e observação das diversidades por meio das relações possíveis entre humano-corpo, suas outras dimensões e o resto do mundo, de maneira não estanque. Não havia a preocupação com o desenvolvimento de habilidades, mas com as inteligências que vêm do corpo no sentido da construção e sustentabilidade de processos vitais, entre eles, o sentimento de pertencer, a motivação e a curiosidade pelo mundo, a possibilidade de experimentar o amor em suas relações. Construções acima de tudo pessoais, sem as quais a vida não se estabelece nem se sustenta. Que os “normais” vivenciam e são encorajados a vivenciar, mas que são historicamente negadas aos “diferentes”.
Nesse ambiente, onde diferentes tipos de corpos trabalham juntos, com suas características diversas, não cabe distinção entre eles e podemos desconstruir conceitos como deficiência ou normalidade. Aqui, o que importa é o benefício da diversidade, e não o que possa ser socialmente considerado ou entendido como deficitário.
Com essa visão, iniciei o trabalho na APAE de Florianópolis em 2004. O grupo APAEDança Floripa nasceu de uma experiência de dança clássica somada ao trabalho de desenvolvimento das pessoas com deficiência e possibilitou um ambiente onde bailarinos experientes e alunos do Grupo de Dança da APAE formassem uma unidade. O foco do trabalho não deixou de ser “terapêutico”, mas a partir dele desenvolvemos a produção artística: peças e coreografias, cujas criações nasceram essencialmente do trabalho em conjunto.
Frequentar espaços sociais onde a presença de pessoas com deficiência é tão rara – como festivais de dança, congressos de arte e educação, hotéis e aeroportos – impulsionou nos bailarinos um sentimento de empoderamento. Um sentimento de orgulho. O palco e todo o seu entorno representam, agora, um lugar de reconhecimento, de autoria. Um lugar de libertação.
Observei a construção desse lugar em todas as ocasiões em que tivemos a oportunidade de dançar: por exemplo no Festival de Dança de Joinville, nos anos de 2008 e 2009. Mais uma vez pude presenciar a ocupação, por essas pessoas, de lugares essencialmente “normais”, o ambiente da competição, da apresentação de dança, da busca por corpos “perfeitos”, esguios, brancos, definidos, esticados. E essa observação me fez concluir que, no fundo, todos buscamos a evolução dos nossos corpos, e o resultado é sempre inesperado.
Em 2010, no Congresso Mundial de Artes IDEA, em Belém, Pará, conhecemos artistas do mundo todo que desenvolviam trabalhos com a mesma proposta do nosso. Pela primeira vez, tínhamos um parâmetro real de comparação, que nos dava subsídios para avaliar a qualidade artística/autoral do grupo. Foi um estímulo para todos os envolvidos constatar que estávamos no caminho certo: recebemos incentivos e aplausos de pessoas que trilham esse caminho há muitos anos e possuem uma rica experiência em arte e inclusão. Tony Horitz, diretor da ONG Inglesa Diverse City foi
uma dessas pessoas. Depois de conhecer nosso trabalho, nos convidou para uma parceria. No decorrer dos encontros e reuniões sobre o tal projeto, nos vimos diante de um desafio muito maior do que imaginávamos: a participação no show de abertura dos Jogos Náuticos nas Olimpíadas de Londres de 2012.
O trabalho começou a ser elaborado no início de 2011. Através de encontros virtuais mensais, a criação coreográfica foi desenvolvida sempre em conjunto. Dividimos a direção artística eu, Louise Katerega e Deborah Baddoo, diretoras dos grupos Foot in Hands Dance e State of Emergency, respectivamente. Nosso grupo interagia com os bailarinos ingleses e conseguia se comunicar apesar da barreira do idioma. Esses encontros tomaram vida própria, e se tornaram um grande intercâmbio cultural para todos os envolvidos.
Em maio de 2012, recebemos em Florianópolis uma delegação de aproximadamente
20 pessoas, entre elas os bailarinos, a roteirista, o diretor, a figurinista e as duas coreógrafas parceiras. Trabalhamos oito horas por dia durante 20 dias. O espetáculo foi estruturado em meio a um ambiente de respeito, amabilidade e um nível de profissionalismo absolutamente inédito para mim.Em julho de 2012 embarcamos para o Reino Unido: Londres, Bournemouth, Weymouth e Pool, com uma delegação de 25 pessoas. Foram dias muito produtivos e de vivências inesquecíveis. Nos deparamos com uma realidade muito diferente da nossa em relação à inclusão social. Essa palavra, “inclusão”, não é dita. Não é necessária.
A sociedade abraça essas pessoas e as torna parte integrante do todo social. Todas são alfabetizadas, estão inseridas no mercado de trabalho e, acima de tudo, têm voz no âmbito social. A pessoa com deficiência da Inglaterra continua lutando por seus direitos, nem tanto com enfoque em sua condição, mas sim por ser uma cidadã como qualquer outra.
O Reino Unido tem se destacado como referência em acessibilidade e equidade de direitos das pessoas com deficiências desde o estabelecimento do Ato de Equidade de 2010, que prevê para essas pessoas direitos trabalhistas, sociais, de acesso à saúde, benefícios do governo e muito mais.
Nosso trabalho conjunto, de três diretoras artísticas e um elenco de bailarinos-autores, culminou em Breathe – Battle of the Winds, um espetáculo de dança 100% inclusivo, 100% autoral, com um nível de diversidade visível em todos os andares da produção: o diretor, Jamie Beddard, tem diagnóstico de paralisia cerebral; a roteirista, Alex Bulmer, tem deficiência visual; uma equipe rica em diversidade e que, sob um olhar menos atento, poderia parecer não tão revolucionária assim: tudo estava tão organizado e funcional que as diferenças de cada um não chamavam tanto a atenção quanto as relações de equidade do conjunto. Os diferentes tinham a mesma importância, o mesmo empoderamento que os normais – seja como bailarinos, cargos artísticos de grande responsabilidade, ajudantes ou colaboradores na plateia.
Das lições aprendidas nesse curto período, a maior foi: a inclusão é possível. Meu antigo sonho de profissionalizar esses bailarinos considerados “deficientes”, já era uma realidade do outro lado do oceano. Depois de todo o caminho percorrido, o reconhecimento vindo do palco, do espetáculo e dos aplausos, tudo isso era, é, uma possibilidade real na vida dessas e de incontáveis outras pessoas.
Em 2014, por intermédio de leis de incentivo à cultura do Governo Federal, foi criada a Cia de Dança Lápis de Seda, em parceria com o Baobah Estúdios de Autocriação e da ÁPRIKA Cooperativa de Arte. Essa companhia, com foco inclusivo, reúne 10 bailarinos com variadas características motoras/físicas e intelectuais, sendo que algumas dessas pessoas apresentam características consideradas “comprometedoras ao desenvolvimento” (um termo desafiador, que sempre me dá vontade de subverter).
É por meio deste grupo misto e heterogêneo que se potencializou uma experiência criativa nesses indivíduos. Cada um contribui à sua maneira e com as possibilidades que tem à bordo. O que falta ou o que excede, segundo modelos adotados de “normalidade”, sinceramente não poderia importar menos, especialmente depois da nossa experiência no Reino Unido.
Ao utilizar a arte como propulsora da evolução social do grupo, surge um domínio onde não existe certo nem errado. Todos podem criar, expressar e construir, com liberdade, individualmente e em grupo. É no campo da arte, entendida como metáfora da própria vida, que temos a possibilidade de experimentar livremente, sem repressão, sem precisar ser “normal”.
Depois de um extenso período de apresentações do espetáculo Convite ao Olhar (2014-15), no qual embarcamos em turnês e participamos de diversos tipos de eventos, comecei a notar nos bailarinos aquela mesma sensação de empoderamento e autoria que conquistamos no Breathe. Mais uma vez percebi que prevaleceu a química do grupo versus as disparidades corporais. Com as questões individuais superadas, fica para trás a “auto repressão”; vem o orgulho de si, do seu corpo, de quem nós somos.
Só conseguimos observar essa evolução individual em sua totalidade ao observar a evolução do grupo.
O processo de criação e desenvolvimento do próximo espetáculo, Será que é de Éter?, inspirado no trabalho de Chico Buarque, levou essa evolução a um novo patamar: a rotina de preparação e ensaios agora incluía novos personagens, um grupo de músicos que se apresenta ao vivo, no palco, com os bailarinos. A relação entre todos esses atores se aprofundou ao longo de toda a jornada do espetáculo e, se já podia ser notada por trás das cenas desde os primeiros momentos, hoje é perceptível para o espectador, no palco.
As transformações positivas em todos os envolvidos foram impressionantes para mim, e a partir daí, sinto que a Cia. ganhou novos membros no grupo liderado pelo diretor musical do espetáculo, Luiz Gustavo Zago e pela cantora e parceira nesse projeto Cláudia Passos.
Concluí que os “meus” bailarinos, sob a “minha supervisão”, agora são um elenco firme, autoral, empoderado, com direito a decisões de todos os tipos e que, livres das amarras da normatização social, demandam uma participação artística relevante em toda a produção da companhia. Isso acontece porque eles são bailarinos profissionais, remunerados, conscientes e ativos na atividade da criação.
Convidam o público a olhar – não os limites de cada um, mas o espaço que existe além. Não o que eles, nós, temos de diferente, mas o que temos de parecido: o que não existia e tivemos a oportunidade de criar juntos.
Referências bibliográficas
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LOURO, Viviane (Organizadora). Arte e Responsabilidade social: inclusão pelo teatro e pela música/ Viviane Louro; Sergio Zanck; Alex de Andrade; Lisbeth Soares; Flavio Gonsales. Santo Andre: TDT Artes, 2009.
PESSOTTI, Isaías. Deficiência Mental: da superstição à ciência. São Paulo: T. A. Queiroz.
VYGOTSKY, Lev Semyonovitch. Estudos sobre a história do comportamento: Símios, homem primitivo e criança. Trad. Lólio Lourenço Oliveira. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
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http://www.apa.org/about/gr/issues/disability/idea.aspx